28/03/2023

É só mais uma tarde de terça-feira para algumas das pessoas que frequentam o Centro de Convívio e para moradores do Bairro da Associação de Moradores de Massarelos (AMM). Mas o dia é especial, já hoje é o início de um novo projeto que vai dar cor à zona da escadaria da Calçada da Boa Viagem. 

 

A sessão vai decorrer ao ar livre, com mesas e cadeiras para todos os que queiram aparecer. Fazem-se telefonemas de última hora para garantir que ninguém fica em casa.  

 

Hoje o dia não é de crochet, mas enquanto espera Angelina vai fazendo qualquer coisa: “de caminho vem aí o Natal e eu não tenho nada feito”, diz enquanto borda um pano. As vizinhas vão chegando, uma de cada vez, e lembram-se que hoje a atividade é diferente. “Depois de velha, fazemos cada coisa, mas a velhice é só no bilhete de identidade”. 

 

Ao grupo junta-se Laurinha, mas só depois de muito insistirem. É a mais nova, muito jovem ainda, e pela sua ousadia tentou convencer Gina, vizinha que vive mesmo ao lado da parede que vai ser intervencionada, a juntar-se ao grupo, mas sem sucesso.  

 

“Papel, Pano, Pedra”, um mural em construção 

 

Godmess apresenta-se e explica o que é, afinal, a arte urbana. O convite está lançado: “quero que venham pintar comigo a vossa parede”. A resposta é unânime, mas com uma ressalva: “nós vamos, mas se não ficar bem, não se chateia connosco”. 

 

 

Num processo colaborativo, mas sobretudo participativo, vão começar por desenhar numa folha o que gostariam de ver naquela parede. Passarão, entretanto, esses desenhos para um saco de pano que ficará com elas, para que transportem as linhas, os novelos e as agulhas. Depois, será Godmess a redesenhar, indo ao encontro das ideias transmitidas, para depois, em conjunto, passarem para o mural. 

 

 

Daqui a uns dias, já durante o mês de abril, o local da intervenção artística será o muro de pedra que acompanha a escadaria na Calçada da Boa Viagem. O espaço não é desconhecido para estas pessoas, já que tem vindo a ser intervencionado através do projeto Olhó Nobelo”. Quem por lá passa, vê um corrimão colorido, decorado em crochet pelas utentes do Centro de Convívio, por moradores do Bairro e ainda por outras pessoas que não fazem parte da freguesia, mas que tiveram conhecimento através das redes sociais. 

 

Do novelo e das agulhas para as tintas e pincéis  

 

Maria Angelina Costa tem 84 anos e é das mais faladoras. “Hoje deixamos o crochet, mas está a ser muito bom. Só que eu não sei pintar muito bem, mas faço aquilo que consigo”. Explica-nos que tentou desenhar um novelo e a agulha de crochet, “e este coração aqui é o meu. Bem ou mal, é o que eu sei fazer”. Desabafa que a melhor parte destas atividades é que ajuda “a passar bem o tempo e a rir”. Está muito curiosa com o resultado da parede, acha que “vai ficar muito bonito”, mas reforça que desenhar não é a sua arte: “vou fazer o melhor que posso”. 

 

Maria Aurora Araújo tem 79 anos e no desenho que fez há várias palavras. Percebemos, entretanto, que se trata de uma espécie de dedicatória.

 

 

Aquilo de que mais gosta aqui é “passar o tempo, ocupa-me e ajuda a esquecer a idade, que é aquilo que custa mais”. Gosta muito das meninas (refere-se às técnicas da associação), porque “são muito nossas amigas e ajudam-nos muito”. 

 

Maria Teresa mostra-nos as flores que desenhou no vaso e confessa: “no papel foi mais fácil, agora aqui no saco é mais difícil, não fica tão bonito”. Revela que está a ser uma tarde muito boa e que gostava, volta e meia, que aparecessem coisas destas, diferentes, “para pormos o nosso cérebro a trabalhar.” Passar para a parede “vai ser uma aventura e das grandes”, remata, mas “se não ficar bonito, vai dar para rir”. 

 

Novo mural de arte urbana 

 

“É preciso ter lata!” é a iniciativa desenvolvida pela Associação de Moradores de Massarelos, no âmbito do projeto “Olhó Nobelo”, e que conta com o apoio da Ágora, integrando o Programa de Arte Urbana do Porto. A orientação está a cargo do artista Godmess. 

 

É com ele que falamos antes do início da sessão. Com uma vasta experiência nesta área da street art, explica-nos que “o principal objetivo é a comemoração dos dois anos do projeto, que tem sido consolidado pela associação e por estas senhoras que estão hoje aqui connosco” e, ao mesmo tempo, “proporcionar-lhes uma experiência nova, para perceberem que a idade não é impedimento para aprenderem e fazerem coisas diferentes”.  

 

 

Os principais desafios estarão no facto de “um trabalho desta natureza ter associada alguma complexidade física. Estão habituadas a um trabalho de pormenor, de proximidade do olhar, e isto vai ser mais uma atividade desportiva do que artística para elas”, conclui. 

 

Marina Pinto, educadora social na AMM há três anos, é uma das técnicas que acompanha as participantes no projeto. Vê com grande entusiamo que isto esteja, de facto, a acontecer e que daqui a umas semanas já se possam ver os resultados. O principal objetivo é “combater o isolamento social”. Esta é mais uma atividade desenvolvida pela associação. Explica-nos que “se não fosse esta atividade, elas hoje estariam dentro de casa”.  

 

Aproximar os mais velhos desta expressão artística, normalmente associada aos mais jovens, e trabalhar o estigma relacionado com o grafiti, mostrando que grafitar não é vandalizar, são aspetos a ter em conta num projeto que pretende ainda proporcionar-lhes um envelhecimento ativo, combatendo o isolamento social e o sedentarismo.  

 

 

A poucos minutos de terminar esta sessão, percebe-se que há imagens que não poderão faltar no mural: agulhas, novelos, a mascote do projeto e, claro, o gato da Gina. 

 

Talvez tenha sido só mais uma tarde para os utentes da AMM, com mais um projeto que lhes ocupa o tempo (aquele que angustia, porque é rápido ou muito lento). Mas na já longa vida destas pessoas, há ainda muito espaço para receberem tudo aquilo que lhes quiserem oferecer. O que mais valorizam? O tempo: aquele que lhes é dedicado e que não perdem uma oportunidade para agradecer.  

 

Texto: Catarina Madruga

Fotos: Guilherme Oliveira

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